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sábado, 6 de dezembro de 2008


O TAROL DA SALVAÇÃO
J. Norinaldo

O sr. Luis Defino, que se aposentara há algum tempo, ficara com um bom salário. Sonhara fazer muitas coisas quando aposentado, mas não fez nada. A vida mudou radicalmente, em casa o ostracismo levou seu Luis à depressão, vivia de mau humor o tempo todo, tentou arranjar um novo emprego mas não conseguiu e sua esposa começou a sofrer com o nervosismo do marido.
Luis não deixava sua mulher escutar o rádio, o que antes ela fazia todos os dias enquanto ele estava no trabalho… qualquer barulho irritava o homem, principalmente se fosse contínuo. D. Edna viu a sua casa virar um verdadeiro inferno com a presença agora constante do marido.
Ela também sonhara viajar e se divertir assim que este estivesse aposentado, no entanto, ainda não haviam saído de casa e ele já se aposentara há dois anos.
Um belo dia, uma família se mudou para a casa ao lado da de Luis. Era um casal jovem com apenas um filho de oito anos, uma linda criança que se chamava Gabriel.
No começo foi tudo normal, os vizinhos se cumprimentavam, mas Ricardo, o vizinho, já comentara com Selma sua esposa que achava o vizinho estranho, não sorria nunca e parecia estar sempre com raiva do mundo.
Nunca, porém houve nenhum incidente digno de nota entre os dois casais, até que chegou o natal, Luis não quis ir passar as festas na casa de parentes de D. Edna, de modo que ficaram os dois em casa, já que não tinham filhos.
Os vizinhos ainda os convidaram para ir a sua casa, mas Luis, alegando que o natal é uma festa para a família, não queria incomodar. O outro ainda insistiu, mas não teve jeito.
E foi depois deste natal que as coisas começaram a mudar entre os dois.
No dia seguinte ao natal, Gabriel, o filho do casal ganhou de presente do pai um pequeno taról, portanto, Luis foi acordado muito cedo no dia 25 pelo baralho do pequeno tocando seu instrumento: Tararará tarará tatá, tararará tarará tatá.
Luis acordou, sentou-se na cama, sua esposa ainda dormia, ele balançou a cabeça e disse em voz baixa: “Acabou-se o sossego, será que essas pessoas não conhecem o direito dos outros, o que diabo é isto agora?”
O barulho continuava o mesmo de sempre: Tararará tarará tatá, tararará tarará tatá… Aquilo foi levando seu Luis a loucura, esperava para ver se aquilo parava, mas nada. Levantou-se e deu uma olhada por cima do muro, Gabriel inocentemente tocava seu tarol muito feliz:
Tararará tarará tatá.
Aquele som entrava na cabeça do homem parecendo uma verdadeira tortura, Luis desceu do muro e falou muito alto: - “Será que esta tortura vai durar muito tempo?”
A mãe do menino ouviu e ficou preocupada, mesmo sem saber que o vizinho se referia ao seu filho, mesmo assim pegou o menino e o levou para um canto do quintal bem longe do vizinho, o menino continuou a tocar seu tarol.
Luis aguçava os ouvidos, ainda ouvia, mais fraco, mas ouvia, e a tortura continuava. Sua esposa acordara com seus gritos.
- O que está acontecendo? Que gritaria é esta?
- Um maldito tarol querendo me deixar louco, você não está ouvindo?
- Ora Luis, é apenas o menino do vizinho, deve ter ganhado de presente e está se divertindo, você nunca foi criança? deixe o pequeno brincar, que coisa!
- Não vou admitir que filho de ninguém me deixe louco, vou falar com os pais dele” - falava tão alto que a vizinha ouvia tudo, esta levou a mão à boca e disse consigo mesma: “Ai meu Deus, e agora, vou ter que tirar o brinquedo do Gabriel, não quero incômodo com os vizinhos”.
Bem que tentou convencer o menino, em vão, ora, ele ganhara o brinquedo não fazia muito, e já estava gostando muito dele. Quando o marido acordou, ela lhe contou tudo, este recomendou à esposa que levasse o menino para tocar seu instrumento na praça, também não queria brigas com o vizinho.
Selma levava o menino até a praça e ali ele tocava o seu tarol, como a praça não ficava longe, seu Luis ia para a janela e ficava tentando ouvir o barulho, olhava com ódio para a mãe e o menino, sua mulher notando aquilo disse:
- “Você deve estar ficando louco homem, sai daí, deixa de blasfemar contra uma criança, Deus pode te castigar” … e ouviu mais um monte de impropérios.
O certo é que Luis parou de cumprimentar os vizinhos, estes conscientes que não transgrediam nenhuma lei, continuaram sua vida normal, tinham esperança que logo o menino se fartasse do brinquedo, e ai daria sumiço nele, mas não aconteceu.
Gabriel cada vez mais gostava do seu tarol, para desespero do vizinho, que agora blasfemava a altos brados contra a criança. Sua esposa tapava os ouvidos para não escutar aquelas barbaridades.
Um belo dia seu Luis acordou e não ouviu o rufar do tarol… ficou esperando e nada!!!
O que houve? Será que enfim tomaram vergonha e deram sumiço naquela imundicie? – pensou. Que nada! Continuou pensando… daqui a pouco começa, e ficou com seu mau humor a espera.
- “Nada, já sei, não estão em casa, mas o alívio é só momentâneo, depois começa tudo novamente.”
No outro dia, nada de tarol, porém nem isto levava felicidade àquele homem, ele continuava pensando, mesmo assim levaram muito tempo, e eu sei que foi por implicância, por isto continuarei sem falar com eles, não gosto dessa família.
Certa noite Luis dormia tranqüilamente ao lado da esposa, de repente deu um pulo na cama, D. Edna acordou assustada e viu seu marido banhado de suor, parecia transtornado, ela ficou com muito medo e perguntou:
- O que houve? Você está bem? Por Deus me responde homem!!
Luis com a respiração alterada olhou para a esposa e perguntou:
- Você notou que o menino parou de tocar o tarol? O que será que aconteceu?
D. Edna então teve certeza que seu marido não estava nada bem, mas sentiu raiva e disse:
- Você endoidou de vez homem, vou ligar agora mesmo para o doutor Alberto, você infernizou a vida de todo mundo ultimamente por causa desse brinquedo, ofendeu as pessoas, brigou com o mundo, e agora vem no meio da noite me perguntar por este tarol, ora faça-me o favor. Não vá me dizer que está sentindo falta do barulho, porque ai, quem vai enlouquecer sou eu.
Desta vez D. Edna teve uma grata surpresa, quando olhou para o marido, viu uma coisa que já até havia esquecido, um lindo sorriso aflorava de seus lábios, ele tinha uma expressão de felicidade, ela não entendeu nada, pensou: - “Coitado pirou de vez, e agora o que faço?”
- “Vá dormir, minha querida” Há muitos anos ela não ouvia aquelas palavras. - Durma com Deus, amanhã você saberá o que houve, eu prometo, tenho certeza que a partir de hoje, minha vida será outra.” - beijou suavemente a testa da esposa e também se deitou, em seu rosto um belo sorriso, e uma lágrima lhe escorria dos olhos.
Luis não conseguiu mais dormir aquela noite, só que desta vez de tanta felicidade. D. Edna não conseguiu dormir, preocupada com o comportamento do marido, continuava pensando que endoidecera.
No outro dia, Luis saiu de casa bem cedo, sem dizer aonde ia, ela aproveitou e ligou para o médico da família e explicou tudo ao velho doutor. Este ficou de fazer uma visita ao casal naquele mesmo dia.
Por volta das onze horas Luis chegou em casa com 3 grandes pacotes, todos embrulhados para presente, mas disse que eram uma surpresa e cada vez mais a mulher acreditava na loucura do marido, já sentia até pena.
- “Bem minha querida, eu lhe disse ontem que minha vida iria mudar, que lhe contaria tudo, aguarde só mais um pouco e ficará sabendo de tudo. Primeiramente quero lhe dar este presente, espero que goste, vamos abra.”
D. Edna, perplexa, recebeu das mãos do marido aquela caixa e com mãos trêmulas começou a abri-la… sua surpresa foi imensa quando viu que se tratava de um lindíssimo rádio, o seu já estava muito velho.
Esqueceu a loucura do marido e correu para seus braços, este a recebeu afetuosamente lhe dando um beijo na boca. D. Edna não conseguiu segurar a emoção e começou a chorar.
- Vamos querida, ligue, agora pode ouvir o tempo que quiser, não está feliz?
- Muito, querido, você nem imagina, mas o que houve? Porque esta mudança?
- Já disse, tenha um pouco de paciência e logo saberá de tudo, disse ele sorrindo - coisa que não fazia há muito tempo.
Assim que o vizinho chegou do trabalho para o almoço, seu Luis apertou sua campainha, D. Selma veio atender e tomou um susto quando o viu.
“O que será agora meu Deus? Será que este homem não vai nos deixar em paz?.” Porém notou um sorriso no rosto do vizinho ao dizer:
- Bom dia, vizinha, eu poderia falar com vocês?
Nisto Ricardo apareceu, quando viu seu vizinho seu sangue ferveu nas veias, aquilo era demais!!! O que era agora? – pensou. E foi logo dizendo com voz áspera:
- Escute aqui, eu já tirei o brinquedo do meu filho que tanto lhe incomodava, o que quer agora? Que eu jogue também meu filho fora? Nem sequer ouvimos rádio aqui, eu comprei esta casa com muito sacrifício, não sou rico, nunca pensei ser um mau vizinho, portanto acho que o senhor tem exagerado em suas excentricidades, conheço os meus direitos, assim como meus deveres. O que deseja agora?
O homem ouviu tudo calado, depois deu um triste sorriso e disse:
- “Calma amigo, sei que vocês têm todos os motivos do mundo para não gostarem de mim, sempre fui muito egoísta e mau, mas agora vim aqui exatamente para pedir perdão pelas blasfêmias que disse contra seu filho, e lhe trazer um presente. Se conseguirem me perdoar eu lhes garanto que se assim desejarem, nunca mais lhes dirijo a palavra, porém o meu desejo é que sejamos grandes amigos.
Por favor, chamem o menino, quero lhe dar este presente, tenho certeza que vai adorar.”
Ricardo não entendia nada, olhava desconfiado para aquele pacote, depois do que ouvira aquele homem dizer do seu filho, aquilo bem que poderia ser uma bomba. Mesmo assim foi buscar seu filho, quando seu Luis viu o menino, o olhou com muita meiguice e disse:
- Olhe o que eu lhe trouxe de presente. Vamos abra e veja se gosta!!
O pai incentivou a criança a abrir o pacote, e quando Gabriel colocou os olhos no conteúdo, deu um grito de felicidade e seus olhos brilhavam como diamantes, Ricardo também se assustou, aquilo devia ter custado uma fortuna. E como soubera que o sonho do menino era um violino, será que seu filho pedira aquele presente, e não dissera nada aos pais.
- É para mim!!!!!!!! - gritava o menino - Que lindo!!! muito obrigado, olha mãe que lindo!!!
E retirou da caixa um belíssimo violino.
- Não podemos aceitar um presente tão caro, isto deve ter custado uma fortuna - disse o Ricardo.
- Não existe dinheiro que possa pagar pela felicidade de uma criança! O senhor não viu os olhinhos dele quando viu o violino? É seu, garoto e faço questão de lhe pagar aulas de música, aceita? - Bem e para provar que mudei, quero convida-los a jantar hoje conosco, aí ficarão sabendo de toda a história.
O casal mesmo diante de tanta surpresa, aceitou o convite.
Luis avisou a esposa, que com muita satisfação começou a preparar o jantar, nossa há quanto tempo não recebiam uma visita, e esta era muito especial, fez tudo com muito carinho e depois foi se arrumar para recebe-los.
Ricardo e família chegaram cedo, conversaram muito e em seguida foi servido o jantar, todos não cabiam de curiosidades para saber da novidade.
Após o jantar passaram a sala, e todos se acomodaram, só seu Luis ficou de pé.
- Atenção: Agora ficarão sabendo que não fiquei louco como chegou a pensar minha mulher, vou contar-lhes com detalhes o que me aconteceu:
- Eu tive um sonho. Eu estava na França, era há muitos anos atrás, me encontrava num tribunal, diante um juiz, cometera um crime muito grave, ou vários crimes. Minha primeira surpresa foi quando olhei para o juiz, este, mesmo de peruca e com aquelas roupas engraçadas, não era outro senão eu mesmo, vi quando ele se levantou e apontando para mim disse:
- Este homem cometeu os piores crimes, Não gosta da vida, não gosta de música e o pior, blasfemou contra crianças. Portanto eu o condeno a morte na guilhotina, será executado assim que o tarol parar de tocar. E saiu, eu então fui levado para um grande pátio, muita gente ali para assistir a minha execução, vi a guilhotina, minhas pernas não me obedeciam mais, fui arrastado até ela.
Ali colocaram minha cabeça numa espécie de buraco, vi a lâmina presa acima… vi um cesto em frente a mim. Comecei a suar muito e a pensar na minha vida, tinha pouco tempo para me arrepender dos meus pecados.
Logo trouxeram um menino com um tarol e pensei: maldito tarol, nem nessa hora me livro dele.
Foi dado um sinal e aquele menino começou a tocar: Tararará tarará tatá, tarará tarará tatá, pensei: Não tenho saída, pelo menos não vai demorar, pois este moleque logo parará e terminará tudo para mim, me lembrei com saudades da minha mulher, senti uma grande tristeza, não conseguia vê-la e isto me causava muita dor. O menino continuava tocando, na minha insanidade eu ainda pensava, “ele quer me torturar”, sabe que odeio este barulho, vai demorar bastante, de repente pára e a lâmina desce, um calafrio me percorreu todo o corpo. A agonia era grande...
O tempo passava e nada do menino parar de tocar, olhei para ele, vi um lindo olhar, ele continuava firme, o tempo foi passando, eu sabia que aquela criança mesmo que com muito esforço não agüentaria mais por muito tempo, a platéia começava a se irritar, vaiava o menino, queriam que parasse, ele continuava e agora aquele tararará tarará tatá que tanto me irritara, agora era uma música divina aos meus ouvidos. Olhei mais uma vez para o menino, este parecia cambalear, suava muito, demonstrava um grande cansaço, pedi a Deus que lhes desse força, jurei que mudaria minha vida, passaria a ver as crianças como devem ser vistas, pedi para que não parasse, que ironia, eu que tantas vezes blasfemara contra meu vizinho, agora implorava para que aquela criança continuasse tocando… E ele continuou, a platéia começou a se retirar irritada, aquela linda criança não queria que eu morresse, comecei a sentir isto, eu amava aquele menino.
Quase ninguém mais estava na praça, começava a escurecer.
De repente aquele juiz que me causara tanto espanto, ordenou que travassem a guilhotina e me soltassem, e que um soldado destruísse o tarol do menino.
Para minha maior felicidade eu me senti livre, fora perdoado, corri então para o menino, me ajoelhei a sua frente e lhe agradeci por ter me salvo a vida, depois olhei para o seu tarol, ali no chão destruído. Disse-lhe:
- Sinto muito pelo seu tarol amigo, e ele me olhou com toda sua inocência e disse:
- Não faz mal, o importante é que está vivo, eu não gostava mesmo desse tarol.
- E porque não gostava dele? Eu gosto, pois foi com ele que me salvou da guilhotina…
- É que o barulho dele irritava meu vizinho, o seu Luis, e ele falava muitas coisas feias para mim, queria tanto que ele gostasse de mim, mas o tarol estragou tudo. E na verdade eu queria mesmo um violino.
- Foi quando eu descobri que aquele que me salvara era o Gabriel, eu acordei apavorado, como eu não o reconhecera, claro nunca procurei olhar com carinho para esta linda criança. Ai está minha história, por causa desse meu sonho, quero mudar minha vida, amar as crianças e ver a vida como ela merece ser vista. Minha felicidade não estará completa, se vocês não me perdoarem de coração e se tornarem meus amigos para sempre!!!
- Quando terminou sua narrativa todos ali choravam, Luis aproveitou para mais uma vez abraçar Gabriel com muito carinho e para sua felicidade ganhou um beijo do garoto.
A vida, agora bem melhor para aqueles vizinhos, continuava, mas um dia Ricardo teve que se mudar novamente, fora transferido para outro estado, a separação não foi fácil para o Luis, mas nada podiam fazer, nesta época Gabriel estava com onze anos.
Cinco anos depois, Luis ia completar 65 anos, costumava acordar cedo, às sete horas já estava fora da cama, no dia do seu aniversário, eram seis horas da manhã, Luis foi acordado pelo toque de um tarol, parecia dentro da sua casa…
Tararará tarara tatá, tararará tarara tatá.
Ele deu um pulo da cama, D. Edna sabia de tudo.
- Querida, está ouvindo isto?? parece aqui em casa, ouça!!!
D. Edna fingindo não ouvir nada disse:
- Não estou ouvindo nada, do que está falando?
De repente o tarol parou de tocar, e seu Luis ouviu o mais lindo parabéns, tocado com perfeição por um violino, ele não tinha mais dúvidas, pulou da cima e correu em direção a música, chagou a sala e viu aquele belo rapaz, vestido de soldado francês da época do sonho tocando seu violino com perfeição. Por pouco o coração do homem não para de tanta emoção. Depois ainda ouviu sua música preferida tocada com muito amor e capricho “Fascinação” Gabriel sabia que ele adorava.
Seus pais também estavam ali, vieram todos ao aniversário do velho amigo. Após a grande emoção, seu Luis ordenou que todas as crianças do bairro fossem convidas para a festa, não precisava, elas já haviam sido convidadas por D. Edna, a casa foi enfeitada com milhares de balões e mais parecia um aniversário de criança, e talvez fosse mesmo….
A casa estava repleta de crianças e seus pais, quando seu Luis pediu atenção de todos e disse que voltaria logo com um presente que ganhara, foi ao seu quarto e voltou com o terceiro pacote que trouxera aquele feliz dia após o sonho.
Abriu-o, e dali tirou um tarol, pendurou no pescoço e saiu para o quintal tocando, com um chapéu de papel colorido na cabeça.
- Tarará tara tatá, tararará, tarará tatá…
Logo a garotada o seguia, um verdadeiro batalhão de crianças soprando língua de sogra na maior barulheira, ninguém tinha dúvida de que aquele era o homem mais feliz do mundo naquele momento.

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